Beatriz e os seus filhotes: a “Metamorfose dos Pássaros” de Catarina Vasconcelos

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Beatriz estava casada com Henrique, um oficial da marinha, desde os seus 21 anos. Enquanto o seu marido estava no mar, Beatriz ficava em terra, em Lisboa, “a construir a sua família”. Como nenhuma relação existe sem comunicação, os dois iam trocando cartas. O almirante relatava-lhe a sua vida no mar, ao mesmo tempo que Beatriz lhe falava dos seus seis filhos. 30 anos depois da morte de Beatriz, Henrique decide queimar a correspondência que os dois mantiveram durante o seu casamento.

Quando Catarina Vasconcelos ficou a saber dos planos do seu avô, percebeu que não podia “deixar a sua avó morrer pela segunda vez”. Nesse momento, a realizadora lisboeta decidiu criar um filme sobre “esta mulher forte que nunca havia conhecido”.  Nasce assim “a Metamorfose dos Pássaros”, uma história sobre Beatriz e a sua família.

Um filme sobre e com a família

Catarina começou a sua primeira longa-metragem em 2014. Já tinham passado três anos desde a sua última obra. Em 2013, A cineasta partiu da morte de Ana, a sua mãe, para criar, a curta-metragem “Metáfora ou a Tristeza Virada do Avesso”. Depois deste filme que “entrelaçava a história de um país com uma história mais pessoal”, chegava a altura de fazer mais um filme sobre a sua família, como numa espécie de “saga familiar”.

Mas desta vez, Catarina não se iria limitar a representar os seus parentes no cinema. Claro que nomes como Manuel Mourinho e Inês Melo Campos seriam chamados para participar no filme. O próprio avô Henrique teria o privilégio de ter João Pedro Mamede e José Manuel Mendes a encarnar a sua idade meia idade e a sua juventude, respetivamente. Mas haveria alguém mais qualificado para vestir o papel de Beatriz e os seus filhos do que os membros mais novos da família Vasconcelos? A olhar para o elenco, parece que não.

Nas palavras de Catarina, “o filme está a meio caminho entre o documentário e a ficção. Eu resolvi fazer o mesmo com o elenco”. Assim, “a Metamorfose” deixou de ser só um filme sobre a família, para passar a ser um filme com a família. E a própria Beatriz teve o privilégio de ser interpretada por Ana e Ana Margarida, duas netas suas.

De onde veio o nome?

Terá a realizadora encontrado toda a informação que procurava sobre a sua avó nas cartas e nas conversas com os seus familiares? Talvez não, mas a primeira longa-metragem de Catarina tem tanto de documentário como de ficção. A realizadora foi buscar parte da sua inspiração à sabedoria popular. Noutros tempos, alguns anciãos não compreendiam para onde iam alguns pássaros na Primavera ou de vinham no Inverno. Nem sequer sabiam o porquê destas aves não se encontrarem. Sem saberem, resolveram inventar uma resposta: se estas diferentes espécies não se encontram, é porque são os mesmo pássaros, como se tivessem sofrido uma metamorfose.
Quando não sabia o que tinha acontecido na vida da sua avó, Catarina fazia o mesmo que os antigos: inventava uma resposta.

Enquanto continuava a procurar a sua avó, Catarina descobriu “a profunda e próxima relação” de Beatriz “com a natureza”, ao ponto de chamar João, um dos seus meninos mais novos, de “passarinho”. Da mesma forma que “fazia crescer as suas plantas”, a avó da cineasta assegurava o crescimento dos seus filhos. Foi perante esta transformação dos filhotes de Beatriz em adultos que Catarina escolheu o título do filme.

 

“Não sei se aconteceu como no filme, mas se calhar…”

Mas como será que esses mesmos filhotes reagiram ao filme sobre a sua mãe? Embora “tenham gostado da ideia”, a família Vasconcelos estranhou um pouco. “Como vais contar uma história sobre a nossa mãe se tu não a conheceste?”, perguntavam os tios de Catarina. As maiores reticências vinham do filho mais velho, Jacinto. O pai da realizadora chegou ao ponto de não querer que a filha lesse as cartas trocadas por Beatriz e Henrique. Para Jacinto, “elas pertenciam ao universo pessoal e íntimo” dos seus progenitores.

Contudo, todas essas adversidades foram bastante importantes “para que o filme tivesse a forma que tem”. E da mesma forma que os problemas dos irmãos Vasconcelos eram resolvidos por Beatriz, também as suas reticências em relação ao filme se foram resolvendo quando o viram pela primeira vez, a 5 de janeiro. Catarina não esconde o quão nervosa estava quando os levou até ao Cinema Ideal. Até tinha escrito “uma carta com quatro páginas”, para contextualizar aquilo que os seus tios iam ver. No final, todos acabaram por reagir com lágrimas nos olhos. José, um dos seus tios, chegou mesmo a afirmar: “não sei se as coisas aconteceram como tu dizes no filme, mas se calhar…”.

As maiores complicações nas conversas sobre Beatriz vieram de Jacinto. Nascido em 1950, o pai de Catarina Vasconcelos não estava habituado “a falar sobre aquilo que sentia”. De um momento para o outro, o filhote mais velho vê-se obrigado a relembrar a sua mãe. Vê-se perante um filme que gira inteiramente à volta de emoções. Nas palavras da sua filha, “foi como se um trator lhe passasse por cima”. Tanto que só conseguiu disfrutar do filme quando o viu pela terceira vez, de “tão forte que era carga afetiva”. Talvez a comoção dos seus irmãos o tenha ajudado.

Heróis do mar sem heroínas em terra?

Catarina já tinha aproveitado o “Metáfora ou a Tristeza Virada do Avesso” para falar sobre a crise económica da década de 2010. Tal como hoje, muitas conquistas conseguidas no 25 de Abril eram postas em causa e a cineasta teria de abordar esse facto. Da mesma forma, quando chegou o momento de escrever o roteiro para a “Metamorfose”, a realizadora não resistiu a falar sobre a época na qual eles viveram.

Beatriz e Henrique casaram em 1949, quando Portugal vivia sob a ditadura do Estado Novo. Nessa época, as mulheres “ocupavam um papel muito inferior ao dos homens”, sobretudo nas oportunidades que a sociedade lhes oferecia. Para não destoar, Beatriz era dona de casa, “ficando em terra, a construir a sua família”, enquanto Henrique ia para o mar. Seria possível voltar atrás no tempo e inverter esses papéis? Claro que não, e Beatriz resolveu escolher a segunda melhor opção: virar o foco da narrativa dos homens para as mulheres. Na “Metamorfose” é pelo olhar da Mãe Beatriz que vemos o filme.

No mesmo sentido, a realizadora também resolveu desconstruir o mito dos Descobrimentos. Perante a ideia dos “portugueses extraordinários, desbravadores de outros lugares”, Catarina apontou o seu foco para “aqueles que já viviam no resto do Mundo quando os portugueses lá chegaram”. E como fez isso? Quem quiser saber a resposta, terá de ir ver o filme.

 

“As emoções ultrapassam fronteiras”

Apesar de “A Metamorfose dos Pássaros” ser um filme sobre a sua família, Catarina nunca quis que ele “ficasse fechado nela”. E a julgar pelos prémios recebidos até hoje, há muitos fãs desta película fora dos Vasconcelos. Depois da exibição no Festival Internacional de Cinema de Berlim a 21 de fevereiro, chegou o prémio de Melhor Filme na 25ª edição do Festival Internacional de Cinema Kino Pasavaris, em Vilnius. No dia 15 de outubro, foi a vez do Festival de Cinema de Curitiba, no Brasil.

Apesar de achar que “não devem ser os prémios a ditar se um filme é bom ou não”, Catarina apreciou bastante o último galardão, por resultar da votação do público. Apesar da distância, os espectadores conseguiram rever-se com facilidade na “Metamorfose”. Qual seria o motivo para essa recetividade dos espectadores? No olhar da cineasta, deve-se “às emoções ultrapassarem fronteiras”. Sendo esta uma história “sobre as mães” e “como uma família se sustenta depois da sua perda”, a sua mensagem é universal. Nas palavras da realizadora, “todos já passaram ou hão-de passar por isso”.

A saga continua…

Enquanto continua a promover “A Metamorfose dos Pássaros”, Catarina já está a preparar mais um filme. Mais uma vez, o tema será a morte no contexto da sua família. “É um muito próximo para mim, pelas piores razões”, afirma. A realizadora acrescenta que “todos iremos passar por ela. Por isso, devemos tratá-la com naturalidade”. Contudo, devido às dificuldades de financiamento, ainda teremos de esperar até esta obra ver a luz do dia.

Até lá, teremos a história de Beatriz e os seus filhotes nos cinemas portugueses já em 2021. Haverá alguma antestreia ainda neste ano? Sim, e Catarina deixou uma promessa de nos avisar quando ela acontecer.

 

Créditos: @ D.R.

Por Pedro Maia Martins

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