Amália é Portugal e tudo

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Amália é Portugal, é alma portuguesa, e a vida da fadista retrata a nossa grandiosidade, mas também o que nos faz mais pequenos e miseráveis, a inveja, a má-língua e a mesquinhez. Mas disso não cuidarei aqui, porque Amália não é só Portugal.

Amália é mundo, é amor e beleza e dor e sofrimento e saudade e introspecção e festa e alegria e profundidade e leviandade, porque em Amália não há só sentimento, há também espirituosidade. Tudo depende do fado.

Amália é Portugal e tudo.

Amália Rodrigues não é uma poetisa normal. Sim, poetisa, porque só quem tem a poesia a correr-lhe nas veias e o amor e o sofrimento a ritmarem o bater do coração consegue cantar como Amália.

Quando escrevo sobre Amália, resisto usar outro tempo verbal que não o presente. Amália Rodrigues continua a cantar para nós. E hoje, aqui, volto a beijar-lhe a mão e a confessar-lhe que gosto dela, a dizer-lhe que a amo, tal como fiz, pessoalmente, olhos nos olhos, a mão dela na minha, em 1990, no final de um concerto na ilha da Taipa, Macau.

Recordo-me, foi ontem. Lembra-se, Amália?

“Senhora Dona Amália, eu amo-a”. Foi assim mesmo. Fui eu.

Ela, uma senhora de 70 anos, eu um puto de 20. Riu-se, aquele riso de quem ouviu isto tantas e tantas vezes na vida, e de quem gosta de ouvir e de saber-se amada.

Ficamos a falar mais alguns minutos, Amália muito bem disposta, eu muito corado pela honra que não imaginava pode ter.

Nesses tempos, lá longe, tinha saudades de Portugal. Do mar. Do Tejo. Das planícies de vista sem fim do meu Alentejo. Das pessoas, das minhas pessoas, especialmente. Ouvia Amália e estava cá. Estava convosco. Connosco.

Oiço Amália e estou cá. Estou em mim. Hoje. Como ontem. Amália canta e leva-nos a nós, faz-nos lembrar que somos Portugal, ou que Portugal faz parte do que somos, Portugal, esta coisa sofrida, que nunca nos larga, que não largamos. Amália está no nosso âmago, é voz que sai do mais profundo de nós.

“Triste quero viver, pois se mudou em tristeza a alegria do passado”, escreveu um dos nossos maiores, Camões, cantou-o Amália.

“Amália, canta-me o fado”, pedimos. “Amália, tu tens na vida que amar.” (1)

E a fadista parece responder, num poema de sua lavra: “Coração independente, Coração que não comando; Vive perdido entre a gente,

Teimosamente sangrando, Coração independente.” (2)

E, de repente, isto somos nós, com a voz de Amália a cantar por nós, a cantar ao nosso coração. Ao nosso pobre coração.

Fez poeta o rouxinol

Pôs no campo o alecrim

Deu as flores à primavera

Ai, e deu-me esta voz a mim (3)

Todos nós temos a voz que Deus nos deu. Mas Amália tem a voz de Deus, ou dum deus muito nosso, português, se temos direito a alguma divindade só nossa. Sem cuidar de géneros, Amália é a deusa portuguesa que nos canta.

 

(1) José Galhardo, “Fado Amália”

(2) Amália Rodrigues, “Que estranha forma de vida”

(3) Alberto Janes, “Foi Deus”

 

Por André Serpa Soares

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