A tradição ainda é o que era

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Conhecer a história da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, uma instituição com mais de cinco séculos de existência, é conhecer as histórias e tradições de Lisboa. Uma dessas tradições é a Procissão do Senhor dos Passos, que remonta a 1587 e é a mais emblemática e importante do período da Quaresma. Realizada desde então anualmente, é uma das maiores manifestações públicas de fé que se realiza na cidade de Lisboa e liga duas das mais bonitas colinas da cidade. De um lado, a Igreja de São Roque, da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, do outro, a Igreja da Graça, com a sua imponente vista para o coração de Lisboa. É assim há mais de quatro séculos, numa tradição onde milhares de fiéis todos anos percorrem este percurso de três quilómetros.

Organizada pela Real Irmandade Senhor dos Passos da Graça, com um empenhado apoio da Irmandade da Misericórdia e de São Roque de Lisboa, a primeira procissão de Passos e precursora das procissões de Passos espalhadas por Portugal e pelo mundo. Apenas conheceu um interregno não na sua manifestação de fé, mas no seu percurso. Em 1910, devido à implantação da República, a procissão que atravessava o coração da cidade, pela Rua da Misericórdia, Rua Garrett, Rua do Carmo, Rossio, Rua Largo 1º de Dezembro, Largo de S. Domingos, Praça Martim Moniz, Calçada dos Cavaleiros, Largo do Tenrinho e Calçada de Santo André até chegar à Igreja da Graça, conheceu apenas uma colina, a da Graça.

No ano de 2013 retomou o seu percurso original cumprindo a tradição secular de invocar a paixão e morte de Jesus Cristo e retratar a distância da Via Sacra de Jerusalém, com as imagens do Senhor dos Passos e de Nossa Senhora.

À saída da igreja de São Roque, no largo Trindade Coelho, tudo obedece a um ritual. O Senhor dos Passos estreia todos os anos uma túnica. Há o Pendão, a Bandeira Processional, crianças vestidas a rigor e as irmãs da Irmandade sem atribuições, vestidas de preto, as lanternas dos andores da Nossa Senhora e do Senhor dos Passos, a Aia e o mordomo da Nossa Senhora, as diversas Irmandades e Ordens convidadas, irmãos sem atribuições, o andor do Senhor dos Passos, com a guarda da Polícia do Exército e Pálio com o Cardeal Patriarca. Uma banda à frente e outra no final configuram os limites desta tradição que tem vindo a atrair, de ano para ano, cada vez mais seguidores.

No primeiro passo, que retrata Jesus na cruz, cabe ao Reitor da Igreja de São Roque, que tem sido o Padre Vaz Pinto, dar as primeiras palavras que antecedem o caminho entre as duas colinas e que demorará cerca de três horas. Os crentes e não crentes mergulham na rua da Misericórdia, acompanhados por turistas incrédulos e apaixonados pela procissão, com a banda a comandar os passos. A primeira paragem, que coincide com o segundo passo, é na igreja da Nossa Senhora da Encarnação com o Senhor dos Passos virado para a entrada principal. Daí, desce-se pela Rua Garrett em direção ao Rossio, com a igreja de São Domingos, no Largo 1º de Dezembro, à vista para receber o terceiro passo.

Depois da baixa pombalina e Chiado, a procissão sobe à colina da Graça, ladeada por um dos maiores ex-líbris de Lisboa, o Castelo de São Jorge. Na Ermida de Nossa Senhora da Saúde, à beira da Mouraria cumpre-se o quarto passo. Na Porta do Largo Tenrinho, em plena Calçada dos Cavaleiros, o quinto passo, seguido da subida pela Calçada de Santo André até ao sexto passo, junto à casa onde nasceu S. João de Brito.

A última e derradeira subida cumpre-se já perto do miradouro da Graça, onde os badalos dos sinos anunciam a chegada das duas imagens, o Senhor dos Passos e a Nossa Senhora para o último passo, na Igreja da Graça. No final, a tradição cumpre-se, com mais telemóveis, com mais turistas, com mais credos e etnias, mas com os mesmos “passos”, há mais de quatro séculos.

Afinal, a tradição ainda é o que era.

Frederico Andrade/Santa Casa da Misericórdia de Lisboa

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