A primeira heliografia de Niépce

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Uma mulher em falsete canta de forma audaz contra o imenso silêncio vago, sem nenhum instrumento que a sustenha, sem uma breve nota que lhe assinale o fio guia, onde começa, onde termina, a canção. Apenas se ouve vento no intento de cada frase no momento presente aberta. Cada permanência de som soa a um desabafo. A mulher canta sem se aperceber que canta, como se espreitasse por entre a porta de si própria, para um jardim de dor, onde reina céu. Versos em russo. Escuro. Ficha de créditos. Espelhos. Água. Ação. Assim começa Nosthalgia pela mão do mestre, Andrey Tarkovsky.

No cinema fica escuro quando a música entra e se sabe que o filme vai começar. Apesar de tudo, uns minutos antes, reparo que o senhor Joseph Nicéphore Niépces não está sozinho, veio com outra senhora, sua amiga, mas que ao contrário dele, me parece contemporânea (do meu tempo). Não só parece como é, tenho a certeza de a ter já visto por aqui mais do que uma vez, cinéfila por excelência, assídua amante do cadeirão almofadado da última fila, que partilha com outro banco portátil que traz consigo para, de quando em quando, aliviar os pés. A mulher, deve ter vindo acordar Niépces do seu profundo sono, hoje especialmente porque vão passar de novo o filme russo que adora. Passar? Niépces não percebe nada, cada vez menos. Olha confuso para

o ecrã, algo perturbado até. Parece que está num sonho seu, um daqueles que costuma ter ao fim de um almoço refastelado, quando na paz do campo se descansa com sesta, mesmo antes de retomar o vaivém de experiências químicas, tarefas prazerosas, reconquistadas a custo após um enorme alívio do seu cargo no exército francês.

Recorda-se ainda, Niépces de estar pela manhã a elaborar de novo a sua descoberta na câmara escura. Tantos anos a percorrer tentativas. Primeiro o desenho, que era já por muitos uma arte dominada, e por si, uma reconhecida ausência de engenho. E depois a introdução à tal da câmara escura, esta invenção que admira, e que inicialmente fez estalar em si uma ideia: cobrir um papel com nitrato de prata, e deixá-lo repousar na dita cuja escura. Na gravura revelou-se uma ténue silhueta, um negativo. O resultado: bom, mas de nada serve para a arte de impressão, ainda não é o que procura. Anos passam e a vontade de produzir uma gravura positiva alimenta-se do tempo. Eis que um dia se depara com um material, de seu nome betume branco, parece mentira, que na sua qualidade de endurecer ao embate da luz solar, guarda todas as expetativas do nosso inventor. Entusiasmado, alcançou esta manhã uma placa de estanho que cobriu com betume branco, e deixou a repousar na camara escura, durante umas horas, passado as quais se espera que retire uma gravura com a solução de essência de alfazema. Horas de espera que o levam a aguardar num banco de jardim, no qual inevitavelmente adormece. E aqui está, Joseph Niépces a partilhar connosco um cinema.

Andrei Gorchakov já percorre em tela paisagens italianas, manifestando o íntimo desejo de querer fazer algo que não seja apenas para si. As personagens avançam de forma honesta, o olhar percorre pormenores de harmonia espiritual, com uma frase ou outra de diálogo. O tempo abranda. Joseph Niépces está verdadeiramente incomodado. Irrequieto na cadeira recusa-se a ser entregue à ilha de chuva, ao silêncio, à cruel navegação do tempo que decorre diante do seu olhar. Ainda para mais, todo o cenário é muito confuso. A única explicação que consegue encontrar dentro de si, é a de estar a sonhar com a câmara escura, como se ela se tornasse de dimensões habitáveis. Repetidamente suplica à sua amiga para se irem embora. Mas ela de nada vale, porque também se encontra como que enfeitiçada. Ainda tenta recorrer ao rapaz do lado, mas ninguém lhe dirige uma palavra. Todos de olhos colados naquilo que parece uma profunda valsa triste. Enquanto Andrei se aninha na cama, evocando o calor uterino, de um antigo ninho

 

maternal, Niépces conforma-se com a sua luta só, e resolve assumir a fuga de forma vigorosa e individual. Encerra os seus olhos violentamente procurando acordar do seu sonho lúcido e sussurra para si mesmo, “acorda”. Chove torrencialmente do outro lado da janela do quarto de Andrei Gorchakov, chovem gotas de sombra no seu interior. E Niépces, por fim, adormeceu.

O sol a pique acorda as pálpebras do inventor com suaves beijos. Da sua varanda vê toda a encosta da montanha, acordando para uma paisagem verde nu. Ainda atordoado com o seu sonho, dirige-se ao interior da casa, que ainda preserva a sombra do dilúculo como uma criança assustada, e com ela a gélida temperatura que rapidamente se afinca aos ossos de Niépces. A água da torneira corre, e ele lava a cara de forma abundante. A água da torneira corre, e ele ergue a cabeça ao seu reflexo ao espelho, detendo-se por um momento. O tempo adensa-se, com a sua própria intriga, como se de repente de mais espaço fosse o tempo feito, para que todo o tempo lhe fosse entregue, até que em si surgisse a resposta, o propósito. Admira a sua estranha condição com algum ceticismo. Com as mãos toca no seu cabelo, nas suas bochechas, passa os dedos pelos olhos, limpando a água que escorre.

Voltou a rodar a torneira num gesto eterno. E abandonou a custo o seu reflexo, permanecendo entregue a um qualquer vento que rodopiava dentro do seu corpo, sensação que já havia sentido antes. Com tudo isso, haviam passado oito horas desde que abandonara a sua placa de betume branco, havia passado tempo suficiente. Dirigiu-se de novo, lentamente, para fora de casa, onde o sol o reaqueceu de forma súbita como um fósforo incendiado. Parou junto à câmara escura, observando uma última vez a paisagem do campo que tanto amava. O vento, porém, não abrandava, e o que via lhe parecia distante e triste. Também o tempo por ali parou, afundando o seu olhar em si, absorto, como parte daquela paisagem. Tudo o que nele havia, tudo o que nele sempre houvera fora amor. Recordava a guerra, a dor, recordava a sua infância, a mãe. Entre paisagens, não havia diferença.

Retirou a gravura com a essência. Um arrepio enorme subia a sua espinha. Como fazia a gravura lembrar o seu sonho, a sua memória para sempre recordada. O restauro do desenho permanentemente gravado a sol, na retina do seu olhar, agora também ali no papel, em suas mãos. A heliografia, o registo pelo qual não passa o tempo, uma memória incondicional, um gesto do qual não existe retorno, um beijo apenas dado, não havia diferença. Joseph Niépces aponta no verso da gravura “A tristeza é o balouçar de uma pena, no céu do amor”. Ano de 1826, a primeira fotografia.

 

Por Beatriz Figueiredo

 

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