A minha praia

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Todos os anos, sempre, desde bébé de colo, o correr do tempo não se mede apenas pela noite de passagem de ano, mas também pelo Agosto da minha praia. Noutros tempos, quase três meses, hoje em dia, um fim de semana no mínimo. As férias não são elásticas e outros destinos me chamam, mas sem pôr em causa esta passagem de ano, este picar de ponto, a romagem pelos sítios que sobrevivem ao passar do tempo, o passeio pela esplanada, as ruas tão cheias de arte nova, o pôr de sol sobre a praia e tantos outros lugares que se tornaram meus.

Lugares de uma vida, das diversas vidas que aqui se foram cruzando, como lugares que, entretanto, desapareceram como o Luna, onde joguei os primeiros jogos de pac-man, o Europa e os snookers para as tardes de chuva, a Caravela, essa instituição onde comecei a ir para as torradas com a minha avó, onde comi amiúde a irrepetível omelete de camarão com os meus pais e onde bebi cerveja capaz de encher vários barris com os meus amigos, um lugar que era uma instituição, e tal como a revista Tintim, dos 7 aos 77 ou talvez mais, com o senhor Madaleno que nos fez tão felizes em dias e noites aparentemente infinitos. A Casa Havanesa, livraria dos tempos em que havia livrarias com livreiros que sabiam que vendiam livros e não refrigerantes, com a senhora dona Helena de trás do balcão, na sua secretária – de onde apenas saía quando detectava genuíno interesse -, as capas para não estragar os livros na praia e os belíssimos marcadores com fotografias antigas da Figueira. O Pessidónio, discoteca pioneira no país, e que sobreviveu anos com altos e baixos, marcando gerações desde a sua abertura até à minha, e outras, de onde era hábito sair de dia a tempo de rematar a noite com bolo quente na Sofico.

Lugares de ontem e de hoje, como a praia, cada vez mais uma miragem desde a esplanada com a terra a ganhar terreno ao mar ano após ano. Essa praia de vento forte, com fugas ao meio da tarde, enrolado em toalha para proteger as pernas de esfoliação excessiva, do mar com ondas, ondas mesmo, grandes, só para os habitués que nela cresceram e logo aprenderam a furá-las, a fazer impensáveis carreiras, a arriscar mergulhos no limite da rebentação. Uma praia que hoje não me preenche pela instabilidade do clima, mas com o irresistível charme dos seus chapéus listados e cadeiras de lona e conversas com os que por ali ficaram.

Lugares e hábitos que nada seriam sem as pessoas, verdadeiro motivo porque volto, e voltarei ano após ano. Os que já não vão, como os meus pais, imagem de saudade a cada ano, e os outros, os que teimamos em ir por mais ou menos dias, porque somos parte da vida uns dos outros, mesmo quando vivemos na mesma cidade e não nos encontramos. Há nestas amizades de verão coisas peculiares, especiais, uma relação de uma vida, de nos vermos crescer, de, a cada ano, nos vermos diferentes, mas com uma ligação muito particular, sem barreiras geracionais, pois as idades sempre se cruzaram sem grandes limites e as cervejas são bebidas entre tios e sobrinhos, mães e filhas, irmãos. Algumas vezes tentei explicar a quem me perguntava o porquê da Figueira, falhando, tenho a certeza, nessa explicação. Há realmente coisas que não se explicam, esta é a minha praia e sei que de muitos outros também, uma tradição nossa  que teimamos em manter por tudo o que de bom ela já nos trouxe.

Até ao próximo Agosto.

 

Por João Albuquerque Carreiras

 

 

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