A fantasiosa arte da solidão

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Está na hora de voltar. Está na hora. E, no entanto, um embaraço levanta-se e parece tolher os movimentos. A preocupação de “como se faz agora?”. Como é que vamos puder fazer teatro em conjunto e enfrentar esta situação? Enfrentar os medos e dizer para dentro que tudo afinal não passou de um susto e que, mais uma vez, resistimos? Um diálogo do estilo: só acontece aos outros e o pior já passou? Ou vamos enfrentar os medos e, ainda assim, cumprir as regras de afastamento social? Estar sempre afastados, pelo menos, dois metros? Usar máscaras e luvas? Proteger-nos e proteger os que nos são próximos e o todo acima de qualquer coisa? Cada pergunta é como um fio que nos embaraça e prende.

Há alguém aí? Pergunto para dentro de mim esperando ouvir respostas. O coro que se levantava despareceu. Moveu-se para outros lugares. Nem o eco do som da voz regressa, como que dando imagem de que existe um vazio por onde alguma coisa pode passar. Nem voz, nem eco, nem respostas – nada. Aos poucos, nestes últimos dias, secou como a água que desaparece das linhas de água e à pergunta “há alguém aí?” não obtenho resposta. Fui-me embora. Mas como se ainda aqui estou? O que é que mudou?

Já anteriormente à crise do vírus, a sensação de que estar só era algo que infundia medo e que nos aterrorizava. Por oposição, estarmos todos juntos e numa multidão fazia-nos sentir como se fossemos um rebanho sem pastor. Recordemos as “horas de ponta” em que num transporte público ou numa fila de trânsito os receios e ânsias que com frequência nos atacavam quando num assomo de coragem a nossa consciência ganhava a distância necessária para nos vermos. Ninguém já, então, respondia à pergunta: está aí alguém? Os medos que temos são os medos de não saber porque é que estamos ali também. Os medos que temos são os medos de não saber o que nos pode e decerto nos vai acontecer. Esperamos a noite para que alguma ordem serena e cega se imponha sobre o ver o que nos está a acontecer. Mas a noite é portadora de mais temores e amplia os diabinhos e pequenos monstros que atormenta a necessidade de coragem para estar só.

Somos um mundo completamente virado para fora. Temos amigos. Vemos as séries da Netflix em barda e em conjunto, mesmo que separados uns dos outros. Falamos do que aconteceu lá fora, vamos ao futebol, fazemos sessões de terapia em grupo, passeamos à beira-mar com os carrinhos de bebé, vamos ao ginásio, vemos telejornais, ouvimos até doer as mesmas notícias sem nada de novo. E agora, comemoramos o 25 de Abril, o 1º de Maio, a Nossa Senhora de Fátima todos juntos, mas a dois metros de distância. Se antes já era difícil responder às perguntas “de onde viemos? O que somos nós? Para onde vamos? Quem sou eu?” Por favor toque-me! Preciso de sentir! Sinto-me? Sentes-me? Tantas perguntas e ninguém para lhes responder. Por favor alguém que reaja. Digam-me quem sou eu? Todas estas perguntas levam a ter de aceitar que nos afastámos tanto do núcleo que nos marca, do centro que nos define, que só na relação com os outros somos e existimos.

Este isolamento forçado impôs-se como uma época à qual não imprimimos a nossa vontade. É uma época que afinal não foi construída, sonhada, inventada, pensada, por nenhum de nós. É o oposto dos caminhos que estávamos a seguir. Se teve a sua génese num fenómeno de grupo, num impulso de sermos todos um, afinal atirou-nos na direcção contrária. Na rota do eremita que leva uma luz ténue consigo e avança destemido pela escuridão. A cada um está a ser pedido que destrince neste tempo de isolamento o que o distingue dessa massa humana de que fazemos parte. Para perceber quem somos temos de nos sentir. Temos de recolher todas as partes divididas que estão espalhadas por aí. Cada um é: mãe, pai, filho, professor, guerreiro, político, amante, turista, treinador, fazedor de opiniões, trabalhador, preguiçoso, medroso, corajoso, amigo, sadio, ou pertença de um grupo de risco. Já se percebeu. Somos tudo isto que os outros nos vêm ser e para os quais nos armamos externamente. Mas de facto quem responde à pergunta “quem está aí?” quando abrimos a voz para a solidão que nos rodeia? Fomos obrigados — ou assim o aceitámos todos — a retirar-nos por uns breves dois meses. Aprendemos a estar sozinhos e a gostar do que somos? Aprendemos que é a partir dessa arte esquecida da solidão que podemos reerguer a vida?

Este período de introversão, de solidão forçada está a terminar. Agora, levantam-se todos os temores de como voltar e porque regressar a fazer as coisas que fazíamos antes. Mas pode ser de outra maneira? O teatro, os actores têm de se reinventar. Como é que se pode representar com dois metros de distância entre corpos? E com máscaras e luvas? Desinfetando os teatros e, por certo, seguindo todas as normas pedidas. Deseja-se que este período de isolamento tenha sido fértil em ideias, que a imaginação activa tenha trabalhado de forma secreta ou explícita e que a falta de gente à volta de cada um tenha povoado os mundos interiores com muitos outros — novos e antigos personagens. Espera-se que sejam estes que estejam prontos a subir ao palco, que tenham formas novas de dialogar, que tragam imaginação e invenção, de forma a afastar os medos e os fantasmas que até há pouco ocuparam os palcos, esvaziando-os de humanidade. Que estes novos personagens inventem canções, cambalhotas, números encantadores. E que esta época que não desejámos, mas que acabámos por abraçar, nos traga coragem para receber com abertura e olhos limpos as oportunidades que estão a surgir. Que cada um olhe para o seu íntimo e o prepare para acolher o estar só connosco como um momento de construção interior.

Ao apagar a luz do teatro, cada espectador fica entregue ao seu mundo e à escuridão que simula a noite, onde cada um é confrontado consigo. É um espaço preferencial para que o estar só seja uma forma generosa de estar em sociedade. O teatro é uma oportunidade magnifica de estar consigo próprio e com todos os novos personagens que surgiram da nossa activa imaginação confinada. Sejamos eremitas pois. Sejamos como o eremita que ganhou essa qualidade de estar sozinho e de se confrontar com os recantos escondidos da sua alma, com a sua candeia. É por isso que o Teatro Ibérico e a Companhia João Garcia Miguel se preparam para reabrir e retomar actividades no começo de Junho.

 

NOTA: texto inspirado na carta de Tarot O eremita e no texto de Sallie Nichols

Por João Garcia Miguel, fundador e diretor da Companhia João Garcia Miguel

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