A cultura em tempos de vírus

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Músicos estão a dar concertos, escritores estão a ler poesia, bailarinos e atores estão em projetos online com teatros, há filmes nas páginas de distribuidores de cinema, há…

A Cultura é uma das áreas (a Justiça é outra) em que não foram ainda comunicadas medidas especificas pelo governo, que está a dar prioridade à saúde, às famílias e às empresas. Amanhã é dia mundial da poesia.

Republico um excerto de um texto de há quase uma semana sobre os artistas:

“O senhorio não aguarda pelo coronavírus”

O título deste texto é uma declaração hoje ao “Jornal de Notícias” de Rui Oliveira, “ator profissional há mais de 30 anos que viu a sua preenchida agenda de março e abril desaparecer em dois dias”.

Os profissionais de espetáculos são um grupo particularmente exposto a esta crise, pois o resto da temporada está provavelmente perdido, o que os atira para um cenário sem atividade regular até setembro, seis meses parados, meio ano sem rendimento.

Os artistas ganham pouco por mês, nunca ganham 14 meses por ano, quase nunca ganham sequer 12, alguns não ganham nada, muitos têm vários empregos em simultâneo, que não são empregos mas biscates ou o que for possível. Além de precários e mal pagos, não têm quase proteção social, nunca puderam acumular poupanças e ainda por cima são vistos como mamões de subsídio por grande parte da sociedade, “vai trabalhar malandro”, que ainda os vê como parasitas impertinentes improdutivos, “arranja mas é um emprego a sério”, não faz ideia das misérias que se recebe e paga a todos com exceção das novelas de TV, e sabe que muitos disputam o minúsculo orçamento do Estado para a Cultura mas não aceita que não pode ser de outra forma, como de outra forma não é nos demais países europeus.

Os teatros e companhias nacionais e municipais deverão nesta fase garantir parte das remunerações previstas e isso não será altruísmo mas garantia de continuidade sem devastação, mas por exemplo as companhias independentes não têm como fazê-lo sem bilheteira.

Isto significa várias coisas: que as câmaras municipais, sem as quais não haveria cultura se não em Lisboa e Porto, têm de incluir os profissionais de espetáculo nos seus planos de contingência; que o Ministério da Cultura tem de entrar nos apoios que o Governo está a lançar; que os mecenas não façam férias; mas também que todos os artistas se convoquem a si mesmos num país que está carente de criação, de imaginação, de pensamento, para que a sociedade descubra neste tempo de medo e opressão formas de expressão, de grito ou de afeto, de inquietude ou de questionamento, de insurreição ou ressurreição, das artes não para as plateias de cadeiras necessariamente vazias, mas para as janelas de vidro ou de plasma de cada casa em quarentena.

Em todas as crises agudas os artistas rebelaram-se com nuvens contra o chumbo e com chumbo contra as nuvens, e este é um momento que sintetiza uma era, e em que a criação artística deve revelar o que não vemos, sintetizar contradições, denunciar o tempo velho e anunciar o tempo novo, para que cada pessoa, cada sociedade e este mundo se descerre em tempos de vírus e saia das calhas que giram o rato na roda.

Cada um é um elo da desacorrentada cadeia: não é mão estendida ao Estado, é um compromisso não apenas para a transação mínima de rendimentos mas para a transição de uma estrutura posterior de sustentabilidade; não é um pedido lamuriento às instituições, é uma intimação perante a sua missão; não é “uma oportunidade” para os artistas, é um repto para acendam focos impensáveis numa sociedade às cegas.”

Pedro Santos Guerreiro –  facebook pessoal 20/03/2020

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