Introdução à História da Cerâmica – Percurso do azulejo de fachada de Aveiro

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“No barro de Aveiro, dos barreiros que ofereceram aqui, e aqui oferecem, por toda a parte, a céu-aberto, a matéria mesquinha que se transforma e se transcende, afeiçoada pela arte, ungida pela fé e purificada pelo fogo, no céu dos Aveirenses. É de barro, em Aveiro, a corte do Céu…”

David Cristo

 

Uma cidade deve ser considerada tendo em conta as particularidades que certificam a sua singularidade e a conduzem para além do comum. No caso de Aveiro, essa característica provém-lhe inequivocamente do sal, da água e da luz.

O desenvolvimento da cidade esteve, desde sempre, ligado às actividades económicas, principalmente às directamente relacionadas com o elemento água, seja no comércio naval, nas actividades piscatória ou na produção de sal.

O documento mais antigo que testemunha o sal como valor de troca é de 959. Porém, é a construção de muralhas em torno da urbe, no século XV, que reflecte a prosperidade alcançada, onde em breve se instalam instituições de assistência, que ajudariam a amenizar os anos vindouros difíceis do fecho da barra. O século XIX, com a sua abertura artificial mediante a utilização da pedra das muralhas, permite a edificação de uma nova cidade e o aparecimento de novos elementos.

Cidade sem pedra, mas rica em argila, a profissão de oleiro encontra-se registada como sendo das mais antigas. É nesta vasta experiência que a indústria cerâmica local adquire consciência da generosidade plástica do barro e polvilha as fachadas de azulejo, tornando-a única na sua riqueza caleidoscópica.

A aplicação de azulejos no exterior dos edifícios generaliza-se no Brasil para onde se exportavam em grandes quantidades, servindo, inclusive, de lastro aos navios. O azulejo adopta-se como elemento estruturante da arquitectura mas também funciona como reflector de luz e calor, diminuindo a temperatura no interior dos edifícios e como protecção da humidade característica daquela região. Como refere Rafael Salinas Calado, “partiu com a família real e a côrte” (Calado 1996 7). Regressa mais tarde, apelidado por Santos Simões, como “azulejo de torna viagem” (Simões 2001 300).

O primeiro edifício da cidade a ter a fachada revestida na sua íntegra por azulejos (provenientes de uma das fábricas do Porto) surgiu em 1857, propriedade do “brasileiro” Sebastião de Carvalho Lima.

Foram fundamentalmente as fábricas do Porto a modificar as características urbanas da época, com a produção local a ter a sua origem em 1892, com a fundação da fábrica da Fonte Nova, tendo sido a principal produtora de azulejos para o distrito de Aveiro. Para além dos azulejos semi-industriais de padrão e estampilhados, produziu painéis decorativos de vários estilos, cuja execução esteve principalmente a cargo de Francisco Pereira e Licínio Pinto.

Pelas tipologias de azulejo que produziu, é inquestionável que esta fábrica tenha criado um estilo próprio, inconfundível, difundindo as siglas FN por dezenas de edifícios da cidade.

Acompanhando o gosto da época, no início do século XX surge um conjunto de edifícios de decoração Arte Nova e é também o azulejo que, em Aveiro, distingue as manifestações arquitectónicas deste estilo das demais. A Fonte Nova foi uma das três principais fábricas nacionais na produção de azulejaria característica desta nova manifestação artística.

Nesta fase, surgiram na cidade amplas alterações. Foi para isso determinante a política fontista, que beneficiava o desenvolvimento dos eixos de comunicação, tendo-se construído o caminho-de-ferro local em 1864. No artigo do Conselheiro José Ferreira da Cunha e Sousa “A memória sobre Aveiro”, é atestado que (…) só depois da passagem da linha-férrea em Aveiro é que os seus melhoramentos se foram desenvolvendo sucessivamente” (Neves 1940 87).

Igualmente relevante para a época é a criação da Escola de Desenho Industrial em 1893. Fundada pelo arquitecto, pintor, professor e director da escola Francisco Silva Rocha, teve uma importância inequívoca na azulejaria das primeiras décadas do século XX. Pela sua vivência e pelos livros que encomendou a Paris, imprime algum cosmopolitismo na produção da cidade (Rodrigues 2001 49).

O Campeão das Províncias, em 1903, revela a recuperação da região e o incremento das obras “(…) a catividade no seu auge, fazendo mover os machinismos, os trabalhos manuaes, em todos os diversos ramos da indústria nacional e local. O pedreiro, o serralheiro, o carpinteiro, o pintor, o fabricante da telha, do adobo, do azulejo, tudo trabalha sem descanso” (Neves 1997 37).

Após uma época de desenvolvimento económico, ao longo da primeira década do século XX, as dificuldades na fábrica da Fonte Nova começaram a surgir. Ao pressentir a iminente falência, João Aleluia, pintor, desde muito jovem, deste centro de produção, funda, em 1905, no Largo dos Santos Mártires, uma pequena unidade cerâmica.

O local estava fora da malha urbana, mas próximo de vários canais da ria, o que facilitaria o escoamento da sua produção. Produziu especialmente azulejos de revestimento estampilhados, com apontamentos manuais, criando padrões de motivos decorativos de características gráficas acentuadas, que desenvolveram de forma única as suas capacidades de animação das fachadas.

Com a produção dos Santos Mártires a ser cada vez mais procurada, a pequena área que a fábrica ocupava não permitia a sua expansão. Em 1922, numa vasta propriedade na qual é instalada a melhor tecnologia disponível na época, emerge a Fábrica Aleluia, dando continuidade à antiga unidade. Maquinaria mais actual consegue maior produção, propondo uma qualificação artística, atenta aos novos movimentos estéticos internacionais, preocupação que manteve em permanência. Actualmente, para além do fabrico de azulejos em série, podemos observar, em todo o país, painéis executados para grandes artistas como Júlio Pomar e Eduardo Nery.

Num esforço constante de adaptação, hoje, é no complexo universitário que se qualifica a intervenção do território, laboratório dos grandes arquitectos contemporâneos, mas onde, apesar da existência de um dinâmico Departamento de Cerâmica e Vidro, a azulejaria como material de revestimento não ocupa lugar.

Assumindo-se como uma das cidades mais importantes do país, em constante crescimento económico, Aveiro alia a conservação do património às imposições presentes ao seu desenvolvimento, não relegando um dos principais temas caracterizadores: a qualidade de vida. Estes são os elementos que, em conjugação, nela se sentem e o sentido nela vivido é imaterial e permutável – como a luz de que se reveste.

A azulejaria de padrão semi-industrial renova a paisagem urbana ao cobrir as fachadas dos edifícios, a partir da segunda metade do século XIX.

O azulejo definiu de forma emblemática o carácter local da arquitectura da região de Aveiro, pelo que deve ser considerado como elemento patrimonial importante a preservar.

Patrícia Sarrico, Introdução de Percurso do azuleijo de fachada de Aveiro: Dinâmicas para a sua salvaguarda  

Tese de Mestrado em Museologia e Património Cultural da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra.  

 

Por Patrícia Sarrico  

 

 

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