Por vezes queremos mesmo é o desconhecido
Cresci em São Mamede, esse bairro maravilhoso entre o largo do Rato e o Príncipe Real, tão central e perto de tudo o que me interessava, mas afastado da confusão e do barulho, pelo que podíamos brincar na rua. Mais tarde, vivi vários anos na Lapa. Foi naquele bairro bonito, seguro, arejado e com boas escolas, que nasceu a minha filha. Também vivi em Campo de Ourique, uns anos antes de se tornar o sucesso que é hoje, mas já com todas as condições para uma pessoa quase se esquecer de que há outros sítios na cidade. O Chiado foi o mais divertido. Como vivíamos na Rua do Loreto, sair à rua era como se estivéssemos num hotel central de outra qualquer capital europeia. Acontecia sair da mercearia com os sacos de compras, encontrar amigos que me desafiavam para um programa, voltar rápido a casa para largar os ingredientes para o nosso jantar, e sair novamente porta fora, rumo a programas inesperados. São quase sempre os melhores!
Mas estacionar era impossível! Assim, rezei por uma casa com lugar à porta, e, fruto desse pedido, fui parar a Alvalade. Um bairro extraordinário, muito bem ordenado, com jardins e muitas crianças, onde fomos muito felizes até resolvermos começar a viajar por uma grande temporada. Provavelmente não nos restavam muitos mais sítios em Lisboa para viajarmos de casa em casa, pelo que foi com muito amor por esta cidade maravilhosa, mas sem olhar para trás, que encaixotámos as nossas coisas e nos mudámos para Bali.
Quando começámos a conhecer a ilha e a procurar casa começaram as comparações. Instintivamente estávamos à procura do ‘nosso’ bairro ideal para viver. Com os restaurantes, tasquinhas e outros espaços ideais para almoçar, fazer compras, sair com amigos e passear. Não eram bem saudades. Era mais uma tentativa de alinhar a nossa situação actual com a experiência de sabermos onde nos sentimos bem. No início fazíamos isso o tempo todo e até chamávamos os bairros de Bali pelos nomes dos Bairros de Lisboa. Agora, à distância, tenho até vergonha, porque só com muito boa vontade é que se estabelecem comparações entre duas realidades tão distintas.
Passou um ano e voltámos a Lisboa. Voltámos não é bem o termo certo, temos estado em Lisboa e saído muito para todos os la- dos. Aterrar tem sido difícil. Mantenho a minha convicção de que Portugal é o melhor país do mundo para se viver. Mas o que nos moveu – a mim e à minha filha foi, acima de tudo, um enorme desejo de aventura. E quando se começa a viver do improviso e sem quase planos nenhuns, parar torna-se um grande desafio.
Como disse, no inicio começámos por pro- curar semelhanças. Mesmo na alimentação pagávamos caro para comermos como em Portugal. Os vinhos têm preços proibitivos em toda a Ásia e não se encontram vinhos portugueses. Alguns italianos, alguns franceses mas a maior parte são australianos. Os queijos são caríssimos. E a carne, à excepção da galinha que consumíamos local, só comprávamos a que vinha da Austrália. Da produção local comprávamos os legumes e as frutas exóticas. Viciámo-nos em água de coco e de dois em dois dias entregavam-nos em casa seis cocos frescos. As pessoas que amamos mantiveram-se perto com emails, mensagens, chamadas e um postal. Foi com euforia e muita emoção que recebemos um postal da minha amiga Mariana, na altura em viagem pelo Butão. Nessas pequenas demonstrações percebíamos o quanto esses contactos nos faziam falta. E a minha filha aprendeu que podemos aguentar muitas privações se as pessoas que amamos se mantiverem firmes nos lugares que ocupam.
Fora isso, estávamos demasiado entusiasmadas com a nossa viagem, de modo que só tínhamos saudades do que ainda não conhecíamos. Até que um dia em conversa percebemos que, do nosso país, o que mais nos fazia falta era a comida. Aos poucos, sem nos apercebermos, ajustámos a alimentação e quase nos tornámos vegetarianas. Os locais passaram a ter identidade própria e deixámos de procurar semelhanças. Lentamente quase nos esquecemos de Lisboa. Mas chegou o dia de voltar para casa. Deixei Bali com um rio de lágrimas a escorrer pela cara abaixo. Até com estranhos que me cumprimentavam eu chorava copiosamente. Eles, quase sempre tão gentis, apertavam-me as mãos e diziam-me que tinha de voltar.
No avião de regresso recomeçámos a pensar no que iríamos encontrar e nas pessoas que iríamos rever e a emoção da alegria sobrepôs-se à tristeza. Só que nós estávamos a voltar para casa sem termos nenhuma, e a leveza de não ter alicerces é um sentimento estranho de gerir. Tornamo-nos irrequietas e, com a casa ainda em caixotes, viajar torna-se a coisa mais óbvia de fazer a seguir, e a seguir outra vez e sempre. Agora estou em Marrocos, pela segunda vez desde Junho, e percebo que os rituais que mantive para me manter perto das minhas raízes em Portugal estão cada vez mais difusos e foram perdendo importância. No início lia diariamente os jornais portugueses e ainda me preocupava com tudo. Com oito horas de diferença horária, contava as horas que faltavam para os meus amigos acordarem. Não era que lhes fosse falar, mas sentia-me mais tranquila por saber que estávamos todos acordados ao mesmo tempo e que me podiam responder se precisasse.
No meu país houve grandes mudanças e são poucos os amigos que não mudaram radicalmente de vida, de cidade, de país. Neste ano que passou, os meus amigos e família espalharam-se por tantas partes do mundo que só há uma maneira de nos man- termos próximos que é mantendo-nos em movimento. Amanhã estou de volta a Lis- boa e vou saborear a liberdade quase única que vivemos, correndo no percurso jun- to ao Tejo, entre Santos e Belém. Passarei umas semanas a aproveitar o melhor país do mundo, mas depois há outras viagens que já estão marcadas. É que nem sempre queremos o melhor. Por vezes precisamos mesmo é do desconhecido.
Texto e foto: Marta Gonzaga